O Serviço prestado pelos condutores da Uber: prestação de serviços ou contrato de trabalho?

A Uber surgiu em 2009 em São Francisco, nos Estados Unidos da América, sob a forma de uma plataforma digital, oferecendo aluguer de espaços, transporte em carros particulares ou prestação de serviços variados. Estes serviços prestados pela Uber surgiram em Portugal no verão de 2014.

Esta nova economia, designada economia on demand (ou colaborativa), é atualmente considerada uma tendência de mercado e um êxito entre os consumidores destes serviços.

É a economia através da qual se permite um contacto direto entre as pessoas e as empresas, por intermédio das aplicações digitais (apps) ou das plataformas online que facilitam a contratação deste tipo de serviços.

A propósito das empresas on demand algumas questões são levantadas. Nomeadamente questões relacionadas com a concorrência ao serviço tradicional de táxi e com o tipo de relação/vínculo estabelecido entre a Uber e os seus condutores.

Terá a Uber um correto enquadramento regulatório e fiscal? Estará a Uber a violar as regras de acesso e exercício da atividade e da concorrência?

A Uber afirma que paga os seus impostos e que os seus condutores têm as licenças necessárias. Contudo, em Abril de 2015, o Tribunal da Relação de Lisboa, na sequência de uma providência cautelar interposta pela Antral (Associação Nacional dos Transportes Rodoviários em Automóveis Ligeiros), intimou a Uber a suspender os seus serviços.

Abstendo-nos de um prognóstico quanto às questões relacionadas com a legalidade ou ilegalidade da forma como a Uber presta os seus serviços, cumpre encontrar resposta para a questão que ora nos propomos discutir:

Como qualificar a relação entre os condutores da Uber e a empresa on demand (que explora a aplicação e põe os prestadores e os consumidores em contacto)?

À primeira vista, diríamos que o condutor é um prestador de serviços à Uber, a atuar no mercado. Mas poderia a Uber atuar no mercado sem os seus condutores? Não são os condutores uma peça essencial na sua organização? Não são estes obrigados a respeitar um código de conduta? E o poder de “suspender” o exercício da atividade do condutor na sequência de um mau comentário ou de uma má pontuação não se assemelha à figura do poder disciplinar que o empregador tem sobre o trabalhador?

Comecemos por enunciar, em traços gerais, o que distingue um contrato de trabalho de um contrato de prestação de serviços:

No contrato de trabalho está em causa a prestação de uma atividade sob a autoridade de outrem. Existe subordinação jurídica e, em face disso, a atividade é prestada sob a autoridade e direção do empregador.

No contrato de prestação de serviços, está em causa uma obrigação a um certo resultado. Não há subordinação jurídica e o prestador de serviços exerce a sua atividade com autonomia e independência perante o contratante.

A doutrina apresenta-nos dois métodos para distinguir o trabalho subordinado do trabalho autónomo: o tipológico e o indiciário.

No método tipológico obedece-se a uma comparação do tipo contratual em causa com o tipo legal, através de uma análise dos elementos essenciais do contrato de trabalho: i) a determinação dos poderes laborais do empregador, i.e. o poder de direção e o poder disciplinar e ii) determinação da existência de dever de obediência.

O método indiciário baseia-se numa procura de indícios externos ou internos que comprovem ou afastem a subordinação jurídica. Dos quais destacamos: i) o local de trabalho, ii) o horário de trabalho, iii) o fornecimento dos utensílios de trabalho, iv) os termos da remuneração, v) a repartição do risco em relação ao trabalho prestado, vi) a integração do trabalhador numa unidade produtiva, vii) o enquadramento tributário e viii) regime da segurança social. Nenhum destes indícios é, por si só, decisivo. Contudo, estando preenchidos “algumas” (pelo menos duas[i] [ii]) das características existe uma presunção de laboralidade.

Será algum destes métodos capaz de dar uma resposta cabal à questão de saber qual a relação existente entre os condutores da Uber e os donos da aplicação?

Quais os argumentos suscetíveis de serem alegados pelas partes: pelo titular da aplicação e pelo condutor?

Os condutores da Uber poderão alegar que prestam um trabalho subordinado, desde logo por que a atividade por si desenvolvida está sujeita ao controlo e avaliação pelo titular da aplicação, retirando-se daqui a existência de um mitigado poder disciplinar. Acresce que este serviço está sujeito à avaliação e aos comentários dos utilizadores, o que permite ao titular da aplicação recusar, a título definitivo ou temporário, a prestação de trabalho.

Mais se diga que aos condutores da Uber é imposto um conjunto de regras de conduta. A saber: a utilização de um uniforme, o transporte em veículos com determinadas características – cor e cilindrada – a observância de procedimentos no contacto com os clientes e o uso de uma aplicação que permite à Uber localizar os condutores em tempo real e a qualidade do tipo de serviço que prestou.

O titular da aplicação contra argumentaria, que os condutores da Uber não estão sujeitos a assegurar um número de horas de trabalho, que não existe um período de repouso estabelecido entre jornadas (o que lhes permite prestar serviço para outras entidades) e que os veículos automóveis são propriedade dos prestadores do serviço.

Apresentados estes argumentos: Qual seria a plausível decisão de um(a) Juiz(a)?

Do que se deixou explanado, conclui-se que o(a) juiz(a) terá que proceder a uma avaliação global do conjunto de circunstâncias para saber que tipo contratual está em causa.

Pela redação dada ao artigo 12.º do Código de Trabalho (CT), não é expectável que o(a) juiz(a) venha a considerar a existência de uma presunção de laboralidade, se olharmos a características como o local de trabalho, o horário de trabalho, o fornecimento de utensílios para realização da atividade. Concluindo, assim, pela inexistência de subordinação jurídica.

Como supra referimos nenhuma destas características é, por si só, decisiva. Assim, o condutor da Uber não se deve bastar com a alegação de “alguns” dos indícios de laboralidade, para que opere a presunção do artigo 12.º do CT. Deve sim, alegar todos os factos que sustentam a existência de subordinação jurídica, de modo a fazer valer a sua pretensão.

Contudo, a presunção prevista no artigo 12.º do CT é ilidível, por prova em contrário por parte da Uber. Assim, à Uber compete fazer prova da inexistência de subordinação jurídica, demonstrando que a prestação de trabalho não se exerce sobre a autoridade e direção da Uber.

Estamos, salvo melhor opinião, perante um contrato que foge ao modelo tradicional de contrato de trabalho e ao modelo de contrato de prestação de serviços.

Julga-se, em conclusão, que o conceito de subordinação jurídica, apresentado pela nossa doutrina e jurisprudência como fator distintivo destes dois tipos contratuais, só será possível de densificar se procedermos a uma análise casuística.

07 de março de 2016

Sara Fernandes Bello

Margarida Formigal

 

Bibliografia:

LEITÃO, LUÍS MENEZES, Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2014

MARTINEZ, PEDRO ROMANO, Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2010

MARTINEZ, Pedro Romano, MONTEIRO, Luís Miguel, VASCONCELOS, Joana, BRITO, Pedro Madeira, DRAY, Guilherme, SILVA, Luís Gonçalves da, Código de Trabalho Anotado, Almedina, Coimbra, 2013.

FERNANDES, António Monteiro, Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2006

XAVIER, Bernardo Lobo, Manual de Direito do Trabalho, Verbo, Lisboa, 2011


[i] Neste sentido: MENEZES LEITÃO E MONTEIRO FERNANDES.

[ii] Vide ainda: Ac. do STJ 22 de abril de 2009, processo n.º 08S3045, (VASQUES DINIS) e Ac. da Rel. de Coimbra, de 10 de julho de 2013, processo n.º 446/12.1TTCBR.C1 (AZEVEDO MENDES).