Entrou em vigor no passado mês de setembro a Lei nº 83/2017, de 18 de agosto que define as medidas de combate ao branqueamento de capitais, crime previsto e punido no artigo 368.º-A do Código Penal, e financiamento do terrorismo, transpondo a diretiva comunitária 2015/849/UE.
Para o cumprimento dos seus objetivos esta lei prevê uma série de deveres a ser seguidos por diversas entidades, financeiras e não financeiras, entre elas os advogados, quando intervenham ou auxiliem em operações ou transações que suspeitem servir de encobrimento para os crimes de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, como sejam a compra e venda de imóveis, gestão de fundos, constituição e exploração de sociedades.
De acordo com esta lei e de entre vários deveres, os advogados têm o dever de identificação e diligência (artigo 23.º), isto é, preferencialmente antes do estabelecimento da relação de negócio e quando auxiliem ou intervenham em operações ou transações requeridas pelo cliente que possam indiciar envolvimento no branqueamento de capitais ou financiamento do terrorismo, os advogados deverão recolher o maior número de elementos identificativos do cliente, como por exemplo, a identificação dos titulares do órgão de administração, caso o cliente seja uma pessoa coletiva, assim como informações sobre a finalidade pretendida com o negócio.
Nos casos em que esta informação vá de encontro a um determinado grau de suspeita cumpre aos mandatários comunicá-la ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal da Procuradoria- Geral da República (DCIAP) e à Unidade de Informação Financeira (UIF), cumprido o dever de comunicação (artigo 43.º) previsto nesta lei.
Parte integrante da comunicação é a entrega pelos advogados de toda a documentação identificativa do cliente e dos elementos caracterizadores das operações e transações, existindo continuidade na colaboração com estas entidades sempre que tal se afigure necessário.
No decurso do processo de comunicação e colaboração com o DCIAP e a UIF, os mandatários são obrigados a não divulgar ao cliente que foram ou irão ser comunicadas informações sobre as operações ou transações por ele requeridas ou mesmo que se encontra ou possa vir a encontrar em curso uma investigação ou inquérito criminal, devendo agir com prudência de forma a evitar suscitar suspeita de que estão em curso procedimentos que visem averiguar práticas relacionadas com o branqueamento de capitais ou financiamento do terrorismo (dever de não divulgação- artigo 54.º).
Ora, apesar de se encontrar previsto na presente lei que o cumprimento dos deveres a que se encontram adstritas as entidades financeiras e não financeiras deve ajustar-se à natureza das operações e transações em causa e à gestão dos riscos a elas associados, tal não impede que seja colocada em causa a confiança subjacente à relação advogado/cliente e a violação do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), senão veja-se.
O artigo 92.º do EOA prevê que o advogado guarde segredo de todas as informações e documentos que lhe advenham do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, quer os mesmos sejam efetuados no âmbito extrajudicial ou judicial, só podendo revelar tais factos quando tal seja absolutamente necessário para a defesa do cliente ou de si próprio.
Pela análise conjugada dos deveres da presente lei e do artigo 92.º do EOA, conclui-se que a lei do branqueamento de capitais atenta contra o mesmo, colocando em causa a lealdade em que se deve basear a relação com o mandatário porquanto, excetuando o limite ao exercício de alguns deveres quando o advogado atue no âmbito de defesa do seu cliente em processos judiciais (artigo 79º), deixa de fora todas as outras situações que entrarão no âmbito da derrogação do segredo profissional prevista no artigo 56.º.
A ser assim, não só atribui ao advogado um papel de colaborador das autoridades de investigação, contra o seu próprio cliente, cujos interesses deveria defender, colocando em causa o direito constitucional do arguido a escolher livremente o seu defensor (artigo 32.º, nº3 da Constituição da República Portuguesa) como o próprio arguido funciona igualmente como colaborador, já que todas as informações comunicadas pelo mandatário às entidades competentes são por si fornecidas.
Para além desta circunstância, decorre desta lei um conceito abstrato de suspeita dependente da apreciação feita pelas entidades obrigadas, o que pode levar a um desproporcional e abusivo uso da derrogação do segredo profissional a transações que efetivamente não apresentem riscos bem como à inutilização deste mecanismo a operações que apresentem riscos mas que a entidade não entende como suspeita.
Desta forma, e para se evitar a clara contradição da Lei nº 83/2017 com o EOA e as normas constitucionais, o futuro terá de passar obrigatoriamente para uma reformulação da atual lei ou uma revisão do EOA de forma a adequar-se à previsão da mesma, devendo a Ordem dos Advogados não só tomar uma posição como pré-delimitar a atuação dos advogados no âmbito desta lei.
Rita Vaz Serra